O antropólogo Darcy se mostra completamente inteiro em “O Mulo”. Também considerado por muitos literatos brasileiros como um romance regional ele retrata o cotidiano do Sertão das Gerais, de Montes Claros a Cristalina de Goiás. Passa pela construção de Brasília-DF em um tempo de Coronéis. Segundo Wanderlino Arruda, escritor montesclarense, Darcy, sem demorar muito será reconhecido, como um dos grandes romancistas brasileiros do Século XX. Será, talvez, lembrado muito mais como romancista do que como o grande sociólogo, político, antropólogo e político questionador que foi. Somente para relembrar: “Assim cheguei a esse poço sem fundo de lembrança, que despejo em cima do senhor. Sou, hoje, um mulo cheio de reminiscências. Eu nem supunha que coubesse em mim, nem em ninguém, tanta lembrança como as aqui recordadas.“
Sobre esta obra, Darcy escreveu em seu livro Testemunho “Ao contrário do chamado romance social que exalta humildes mas heroicos lutadores populares, em O Mulo eu retrato o nosso povo roceiro, sobretudo os mais sofridos deles que são os negros, tal como os vi, sempre mais resignados que revoltados. Além da espoliação de sua força de trabalho e de toda sorte de opressões a que são submetidos, nossos caipiras sofrem um roubo maior que é o de sua consciência. O patronato rural se mete em suas mentes para fazê-los ver a si mesmos como a coisa mais reles que há.”
“Guardo em mim recordações indeléveis das brutalidades que presenciei em fazendas de minha gente mineira e por todos estes brasis, contra vaqueiros e lavradores que não esboçavam a menor reação. Para eles a doença de um touro é infinitamente mais relevante que qualquer peste que achaque sua mulher e seus filhos. Esta alienação induzida de nossa gente, levada a crer que a ordem social é sagrada e corresponde à vontade de Deus, é que eu tomei como tema, mostrando negros e caboclos de uma humildade dolorosa diante de patrões que os brutalizavam das formas mais perversas. Tanto me esmerei na figuração destes contrastes que um pequeno bandido político em luta eleitoral contra mim fez publicar alguns daqueles meus textos de denúncia como se expressassem minha postura frente aos negros.”
“Quem pegará meus papéis de confissão e sairá depois da minha morte em busca do senhor, seu padre (…) não conto com ninguém.” Darcy retoma o tema da velhice, da desilusão do fim de vida, dos nossos raros momentos de reflexão. O mulo é uma obra de questionamentos, vividas pelo narrador e pelos seus diversos conhecidos de Montes Claros, como muito bem relata Arruda em suas crônicas e pela ocasião do lançamento de “O mulo”. Não é gente. De uma certa forma mostra no romance que alguns resquícios deste pensamento conservador e anti-humano criaram raízes no coronelato brasileiro que Gilberto Freyre, tentou escamotear na “democracia racial” de Casa Grande e Senzalas. Havia uma certa harmonia, um certo respeito do Senhor de Engenho para com o negro e especialmente a negra das Senzalas. Negra que se deitava com o Senhor. Negra ama de leite. E viviam em harmonia. Em “O mulo” Darcy arrebenta está lógica da “Democracia Racial”. E nos traz ainda uma personagem mutante. Permeando entre o bem e o mal. Um personagem múltiplo na fala de Wanderlino.
“Uma madrugada que acordei estremunhado e saí porta a fora, bati com o pé no moleque que vivia enrodilhado ali; Acordando assustado ele me perguntou gritando: Que é seu mulo? Quem é quem? Perguntei eu. Aprendi ali, naquela hora, meu apelido.”
Darcy na sua integridade ética e revolucionária de sociólogo e antropólogo, de educador, de visionário, de gênio falante, de político, de lucidez própria dos grandes homens e dos grandes pensadores define a nação brasileira como “a nova Roma”. Mais forte e criativa, porém.
Darcy, no conjunto da sua obra literária (Maira, Mulo, Povo brasileiro) renova a cada dia a sua convicção antropológica e revolucionária de que aqui na “terra brazilis” formou-se realmente um novo gênero humano. Uma nova civilização; mais produtiva, mais generosa, porque aberta à convivência, com todas as raças e todas as culturas.
Gustavo Mameluque
Gestor Fazendário
Jornalista Membro do Instituto Histórico e Geográfico de Montes Claros.
Colunista do montesclaros.com
Colunista do Novo JN