Prática por demais comum por parte das instituições financeiras, o desconto, quando do depósito, de salários e outros rendimentos do correntista a fim de saldar eventuais dívidas contraídas junto ao banco, vem sendo maciçamente rechaçado pelos tribunais pátrios, inclusive pela Corte Superior, ainda que tal dedução esteja prevista contratualmente.
Entre os diversos princípios que norteiam o ordenamento jurídico brasileiro, vem cada vez mais ganhando importância o princípio da dignidade da pessoa humana, que impõe a tutela dos cidadãos sob a ótica de sujeitos de direitos, como seres dotados de direitos e garantias fundamentais, sem as quais não há como se falar em vivência digna.
Assim, dentre as diversas prescrições legais que decorrem deste princípio, merece ser destacada a atribuição de natureza alimentar às verbas percebidas a título de salário ou outros rendimentos, o que significa dizer que esta remuneração é legalmente reconhecida como imprescindível para a subsistência do indivíduo, e, por isso, recebe um tratamento jurídico diferenciado, sendo absolutamente impenhorável para qualquer fim, salvo para pagamento de pensão alimentícia.
Todavia, em que pese esta proteção que o Direito confere aos rendimentos dos cidadãos, comumente verifica-se que, assim que os mesmos são recebidos e depositados em conta corrente ou outras aplicações financeiras, os bancos imediatamente retêm o valor necessário para solver eventual débito havido junto à instituição, e, para tanto, valem-se do contrato assinado pelo correntista, o qual geralmente contém uma cláusula permitindo esta dedução automática.
Ocorre que este contrato apresenta alguns defeitos, um deles é que, por se tratar de um contrato de adesão (contrato pré-elaborado que impede discussões substanciais acerca das cláusulas), o indivíduo sequer tem conhecimento de que está permitindo esta retenção e, além disto, a cláusula permissiva do desconto direto é considerada nula de pleno direito, de acordo com o Código de Defesa do Consumidor; ademais, a natureza alimentar do salário, por visar, conforme já mencionado, a proteção ao princípio da dignidade da pessoa humana, não pode ser renunciada contratualmente, conquanto é verba inerente à regular subsistência da pessoa, e esta condição nunca pode ser abdicada.
Em razão disto, os tribunais estaduais e também o Superior Tribunal de Justiça têm dado ganho de causa aos correntistas, entendendo que o depósito dos valores não retira a natureza alimentar da renda e, com isto, declarando que a retenção do salário para solver a dívida do cliente junto ao banco, ainda que isto encontre amparo contratual, é completamente ilegal. De outra forma, merece ser ressaltado que há tribunais entendendo pela limitação desta impossibilidade de desconto “automático” dos rendimentos, estipulando um máximo de 30% sobre os rendimentos depositados para que as instituições retenham para pagar os débitos.
Outra questão de suma importância refere-se à abrangência deste entendimento jurisprudencial, pois a imensa maioria das decisões cuidou de casos relacionados a trabalhadores contratados sob o regime celetista ou funcionários públicos, pairando a dúvida acerca dos rendimentos dos profissionais liberais e demais empreendedores.
Em que pese os tribunais ainda não terem se manifestado de forma contundente a este respeito, entendemos que a remuneração destes profissionais também merece o mesmo tratamento dos celetistas e funcionários públicos, em razão de que a norma legal que fundamenta as decisões judiciais favoráveis aos trabalhadores (art. 649, IV, CPC) é bastante abrangente e prescreve que, além dos salários, são impenhoráveis os vencimentos, subsídios, soldos, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios, as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal.
Além do mais, ainda que não houvesse tal disposição, como acima afirmamos, o profissional precisa ter seu rendimento protegido (ainda que parcialmente, como no caso do teto de 30% sobre o qual se permite a retenção), em razão de que não importa o regime jurídico de sua profissão, uma parte da renda certamente é imprescindível para a sua subsistência, devendo ser amplamente tutelada como forma de lhe garantir a subsistência, preservando- se sua dignidade.
Diante disto, as instituições financeiras que queiram cobrar as suas dívidas devem se valer de outros meios que não a retenção automática da remuneração dos seus clientes, conquanto este ato mostra-se judicialmente reconhecido como abusivo e contrário à boa-fé que deve reger as relações privadas, cabendo aos cidadãos evitar que este tipo de retenção ocorra ou, caso já tenha havido, procurar o Judiciário para se ver ressarcido de eventuais danos materiais e/ou morais eventualmente sofridos.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 1 de novembro de 2007