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O que o PLP 39/2020 não discute

Políticas de pessoal e sua importância para o enfrentamento da pandemia da COVID-19

Tramita no Congresso Nacional, em sessões plenárias virtuais com deliberações em tempo recorde, o Projeto de Lei Complementar nº 39 de 2020, que institui o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (COVID-19) e altera a Lei de Responsabilidade Fiscal.

O Programa prevê, dentre outras medidas:

  1. suspensão dos pagamentos das dívidas contratadas entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios;
  2. restruturação de operações de crédito interno e externo junto a instituições financeiras e instituições multilaterais de crédito;
  3. entrega de recursos da União para os estados, Distrito Federal e municípios com o objetivo de financiar ações de enfrentamento à Covid-19, condicionada à não concessão de aumentos e reajustes para servidores públicos, bem como congelamento da contagem do tempo de serviço para fins de adicionais por tempo, até 31 de dezembro de 2021; e
  4. alteração da LRF estabelecendo a proibição de concessão de aumentos, reajustes, reestruturação de planos de carreira e nomeação em concurso público que impliquem em aumento de despesa com pessoal para além do mandato do Chefe de Poder ou Órgão;

Nos termos do art. 1º, parágrafo único, do Ato da Comissão Diretora nº 7, de 2020, que institui o sistema de deliberação remota do Senado Federal, durante o estado de calamidade, cabe a deliberação pelo Plenário de matérias urgentes, que não podem esperar a normalização da situação atípica de pandemia.[1]

Contudo, causa perplexidade que, dentre o pacote de medidas para enfrentamento da pandemia provocada pela COVID-19, haja proposta de alteração do art. 21 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LC nº 101 de 2000), estabelecendo profunda mudança no sistema de gestão da função pública brasileira, em caráter permanente.

O PLP nº 39 de 2020 propõe alteração no art. 21 da LRF para que passe a ser considerado nulo de pleno direito:

1) o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato do titular do Poder ou do órgão;

2) o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Poder ou do órgão;

3) a aprovação, a edição ou a sanção, por Chefes de Poderes e órgãos, de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público ou a edição de ato para nomeação de aprovados em concurso público, quando: a) resulte em aumento da despesa com pessoal nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo; ou b) resulte em aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo.

Segundo a justificativa do PLP nº 39/2020, “a motivação é impedir que os governantes e chefes de Poder atuais criem despesas novas para seus sucessores, inviabilizando, dessa forma, a futura administração”. E, ainda, considera “que proibir isso, mais do que ajudar na presente crise, ajuda a resolver um problema mais estrutural, que a LRF, em sua redação original, não conseguiu plenamente”.

Ocorre que não permitir que o gestor público pratique atos que aumentem despesas com pessoal com a previsão de parcelas a serem implementadas nos próximos mandatos, poderá significar, ao fim e ao cabo, a impossibilidade de execução de políticas de pessoal, na medida em que os gastos com pessoal são despesas correntes de caráter continuado.

O art. 7º do PLP, ao propor a alteração no art. 21 da LRF, na verdade, afronta toda a perspectiva de boa gestão pública de pessoal, instituindo entrave à profissionalização da função pública brasileira.

É bom recordar que a atual redação do parágrafo único, do art. 21 da LRF, que considera nulo “ato de que resulte aumento da despesa com pessoal expedido nos cento e oitenta dias anteriores ao final do mandato do titular do respectivo Poder ou órgão”, visa assegurar condições de igualdade entre os candidatos, preservando o equilíbrio na disputa eleitoral. Do contrário, tal conduta poderia “afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos” no pleito, conforme se lê do art. 73 da Lei das Eleições.[2]

Assim, qualquer proposta tendente a proibir a concessão de aumentos, reajustes, reestruturação de planos de carreira e nomeação em concurso público por um Chefe de Poder ou órgão que ultrapasse o seu mandato não atende nenhum juízo de razoabilidade, na medida em que o que mais se espera dos administradores públicos é que passem a gerir a coisa pública como questão de Estado e não de governo.

Dessa forma, o art. 7º do PLP nº 39/2020, além de violar garantias básicas de profissionalização da função pública brasileira previstas no art. 39, caput, §1º e § 3º, da CRFB/88, também afronta os princípios da moralidade e eficiência administrativa consagrados no art. 37, caput, da CRFB/88. 

A proposta, ao restringir alguns atos de gestão de pessoal ao período do mandato, também é inconstitucional por limitar o exercício de competências privativas dos Chefes do Poderes e órgãos independentes de disciplinarem o regime jurídico dos seus servidores públicos (art. 51, IV; art. 52, XIII; art. 61, §1º, II, a e c; art. 93 e art. 96; art. 128 CRFB/88).

A alteração do art. 21 da LRF significa, portanto, verdadeiro ataque à gestão pública de pessoal por vias orçamentárias, afetando, inclusive, o já tão fragilizado pacto federativo e a separação dos Poderes (arts. 1º e 2º, CRFB/88).

Por tudo isso, espera-se que o Congresso Nacional não aprove referido dispositivo de maneira tão açodada, inviabilizando o debate aberto e transparente sobre o tema, não apenas com os servidores públicos, mas também com toda a sociedade brasileira, já que inviabilizar a gestão pública de pessoal nada mais é do que precarizar os serviços públicos e modificar, por vias oblíquas, o próprio modelo de Estado Social Democrático consagrado na Constituição Cidadã de 1988.

Não obstante todas as dificuldades provocadas pela pandemia da Covid-19, com o grave quadro de enfermidades e o elevado número de mortes, uma lição que certamente já se pode extrair dessa lamentável calamidade pública é que para a superação de crises, e a histórica desigualdade socioeconômica é sem dúvida uma delas, o papel e a atuação do Estado revelam-se cada vez mais necessários, especialmente no que diz respeito aos serviços públicos que oferece, a excelência na sua prestação e a capacitação de seus servidores.

Sarah Campos – Coordenadora do Departamento Jurídico do Sinfazfisco-MG. Mestre em Direito Administrativo pela UFMG. Doutoranda em Ciências Político-Jurídicas pela Universidade de Lisboa, Portugal. Presidente do Instituto Prunart/UFMG. Presidente da Comissão de Direito Administrativo da OAB/MG.

[1] Art. 1o Fica instituído o Sistema de Deliberação Remota do Senado Federal. Parágrafo único. O SDR consiste em solução tecnológica que viabilize a discussão e votação de matérias, a ser usado exclusivamente em situações de guerra, convulsão social, calamidade pública, pandemia, emergência epidemiológica, colapso do sistema de transportes ou situações de força maior que impeçam ou inviabilizem a reunião presencial dos Senadores no edifício do Congresso Nacional ou em outro local físico.

[2] STF, Resp 25110/MA, decisão monocrática, Min. Dias Toffoli, de 12.8.2013.

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